Cabe recorrer à mitologia. Os Jogos Olímpicos teriam sido inaugurados por Hércules, para celebrar um de seus doze trabalhos.
Curiosamente, não se trata de derrotar um monstro poderoso e terrível. O tal trabalho celebrado é o quinto.
Precisou limpar os currais do rei Augias, que guardavam três mil bois e, havia trinta anos, não eram limpos.
O estado era tão terrível que a área estava envolta num gás fedorento e mortal. Para realizar sua missão saneadora, Hércules teve que desviar dois rios.
Ok, mas o que isso quer dizer? O significado é claro. O esporte tinha uma relação direta com gestão do espaço, atenção ao cenário, asseio e organização.
Esses elementos marcavam a administração da pólis, da cidade, desde o período arcaico até o período clássico.
No lugar ordenado e livre de contaminações, o homem podia exercer sua vocação para o pensamento e converter-se em “animal político”.
O esporte na Grécia antiga tinha um caráter híbrido. Misturava a preparação para a guerra e a lida em favor da paz.
Mesclava o caos da disputa à ordem do corpo, de músculos organizadamente trabalhados, nos quais se repetia a harmonia da arquitetura da cidade.
Acreditava-se numa relação comunicante entre os organismos vivos e a estrutura urbana.
Se somos todos gregos, como dizia Shelley, não é de se espantar que a vida de nossos estádios reproduza a vida de nossas urbes.
São Paulo é hoje, de maneira nua e crua, a negação da cidadania, a negação do direito público e a negação da vida comunitária.
É cada vez mais a cidade do controle, da proibição, do egoísmo, da intolerância e do preconceito, cujos pecados são estimulados pelos detentores do poder e pela mídia de manipulação.
Um Pacaembu repete com fidelidade as mazelas da urbe arruinada, mergulhada no caos, na violência e imundície.
Os ingressos são caros porque a vida na cidade é cada vez mais privada, é porque a meta oficial é restringir direitos de acesso.
Há poucos banheiros e eles são imundos, porque assim é nas ruas da capital. Nelas, não existe afago ao cidadão. Nela, estamos sempre órfãos e desassistidos.
Os caminhos ao redor da arena são sempre sinuosos e, não raro, há uma porta ou outra bestialmente interditada. Porque assim é a malha viária da cidade, confusa e deteriorada.
A guarda policial, no estádio, é antipática, inimiga e, muitas vezes, violenta contra os cidadãos que pagam seus salários por meio de impostos. Porque assim é a milícia paulista, herdada da Ditadura, raivosa, repressiva, inclemente, sempre a serviço da tirania conservadora.
O Pacaembu perdeu seu direito à festa franca. Sumiram as bandeiras e quase tudo que poderia expressar pela arte o júbilo popular. Isso porque a cidade também proibiu radicalmente os sinais e a comunicação visual. Porque o vazio degenerado é o padrão de beleza eleito pelos facínoras no poder.
O estádio perdeu suas bancas de nutrição singular. Porque a cidade tem ódio por qualquer gozo, entre eles o do paladar. É a cidade que proíbe a distribuição de livros e a solidariedade manifesta no sopão dos necessitados.
O Pacaembu é um paraíso estésico, mas coberto de espinhos por todos os lados. É agredido todos os dias por uma gestão que folgaria em submetê-lo a um ato de privataria, entregando-o a uma neosseita radical ou a uma construtora, que ali ergueria mais um pombal para a classe média alta.
O Pacaembu é o éden por seu carisma, pela lágrima do velho torcedor, pelo sorriso feliz da menina, pela memória que guarda de tantas artes populares, formidáveis dentro e fora do campo.
É, ao mesmo tempo, o alvo de quem se incomoda com a alegria pública. O Pacaembu é fustigado dia e noite porque é uma casa do povo.
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