segunda-feira, 20 de abril de 2015

NA BANCADA NORTE: A ENSURDECEDORA VOZ DO SILÊNCIO

Por Walter Falceta

Iniciada a disputa, ouviu-se o silêncio estrondoso do compositor e músico, risonho amante do samba. Depois, a quietude ruidosa do rapaz que adorava desenhar e pintar bandeiras do time do coração. Mais além, o brado assassinado do gráfico que se preparava para casar e, ao fundo, a melodia desaparecida do menino grande que embalava o sono da filhinha de oito meses.

São estas as vozes que não ganharão espaço nos noticiários de jornal, tampouco nos programas “espreme-sangue” que borram as tardes televisivas.

Quem percorre a cidade conhece o reduto da Pavilhão 9, naqueles meandros penumbrentos da Ponte dos Remédios, na Zona Oeste, lugar onde se cruzam milhares de histórias contadas, muitas de excluídos e esquecidos, fios do destino que tecem a bandeira resistente e futura.

Ali, caíram estes filhos, pais, irmãos, amigos, brasileiros, humanos, enfim, abatidos pela ignorância, pela intolerância e pela cultura de violência que esfacela o Brasil todos os dias.

A notoriedade do episódio associa-se à paixão corinthiana das vítimas, mas a São Paulo dos horrores registrou outras chacinas mais nos dias precedentes: uma em Campo Limpo, outra no Jaçanã e mais uma em Parelheiros. Os tombados seguem anônimos.

No caso da torcida organizada, a notícia logo subiu às manchetes. Mal apurada, mal acabada, porém, logo adulterou a identidade da agremiação. O reporteiro afobado desconsiderou o empenho antigo dos que buscavam a reintegração social da população carcerária. Segue-se o padrão. Tempos atrás, legendaram o também corinthiano Dom Paulo Evaristo Arns como “amigo dos bandidos”, uma censura a seu trabalho na Pastoral Carcerária.

Na grande mídia, o texto reproduz fielmente a conclusão da polícia paulista, para a qual a tragédia é resultado de um acerto de contas no mercado de narcóticos. Sentença expressa, depois de mínimas horas de investigação.

A imprensa trata de difundir a versão e, imediatamente, inicia o processo de divulgação de antecedentes pinçados, forma explícita de condenação sumária das vítimas.

Com ar grave, o jornalista anuncia que um dos mortos foi preso em Oruro, na Bolívia, depois da morte de um jovem torcedor do San José. Um outro esteve envolvido com drogas. De cada um, indica-se a nódoa possível.

Nestes noticiários, tranquiliza-se a população “de bem”. Segundo a informação divulgada pelos investigadores, alguns dos executados encaixavam-se no perfil dos transgressores da lei. É o mesmo argumento subliminar que livrou do ódio público os autores do Massacre do Carandiru, em 1992.

Repete-se, portanto, o paradigma da diligência policial no Brasil. A verdade se torna irrelevante diante da condição dos trucidados. O negro, o favelado, o pobre, a prostituta, o catador, o morador de rua, o gay, o torcedor, todos enquadram-se na categoria dos cidadãos menos iguais, culpados por simples suspeita, e com estes deve-se economizar o recurso da perícia.

No Brasil, a ciência forense é sempre reservada à apuração dos crimes que envolvem os cidadãos “Classe A”. Investe-se no caso da Rua Cuba, na encrenca dos Nardoni e na folia macabra da moça Richthofen, estrela do sistema penitenciário nacional.

Nestes dramas, a investigação pauta-se por zelo, sigilo e rigor. Noutros, o procedimento ordinário. O número escancara a inoperância do sistema. Entre 1980 e 2010, cerca de 1,9 milhão de brasileiros foram assassinados. O perfil da vítima é: negro, jovem, pobre, do sexo masculino. Somente 8% desses crimes são investigados com sucesso.

Na mira das autoridades, os mesmos cidadãos considerados de segunda classe. O índice de negros mortos em decorrência de ações policiais a cada 100 mil habitantes em São Paulo é quase três vezes o registrado para a população branca. A taxa de prisões em flagrante de negros é duas vezes e meia a verificada para os brancos.

Assustados, desconfiando uns dos outros, habitamos o país do “auto de resistência à prisão”. É o roteiro da morte de um dentista negro, em 2004. Foi assassinado por policiais que o tomaram por ladrão. Plantaram ao lado do corpo uma pistola, a fim de imputar à vítima o crime e destruir-lhe a reputação.

Em outros tantos casos, a imperícia e a pressa dos homens da lei se casa com a incompetência e a negligência dos homens da notícia.

Assim, os poderes cruzados da lupa e do microfone arrasaram a vida de Icushiro Shimada e dos outros trabalhadores da Escola Base, injustamente acusados de abusar sexualmente dos estudantes que educavam.

E ainda fizeram picado da reputação da mulher equivocadamente acusada de matar a filha pela mistura de cocaína ao leite da mamadeira. Trata-se da mesma imprensa poderosa, formadora de opiniões, que cuspiu na imagem do administrador e político Luiz Gushiken, mas que foi incapaz de declarar com a mesma ênfase sua completa inocência.

A Pavilhão 9 nasceu de uma necessidade e de um gesto solidário: mitigar os horrores do cotidiano prisional no Brasil. Ao contrário do que propaga a “bancada da bala” e seus próceres fascistas, este não é o país da impunidade. Pelo menos, não é para os homens e mulheres das classes subalternas.

Constituiu-se aqui a terceira maior população carcerária do mundo. No censo do Conselho Nacional de Justiça, do ano passado, já eram 563.526 pessoas detidas. Somados aqueles em prisão domiciliar, temos 711.463 cidadãos privados de liberdade.

Se contarmos o número de mandados de prisão em aberto, de acordo com o Banco Nacional de Mandados de Prisão – 373.991 –, a nossa população prisional salta para 1,089 milhão de pessoas.

Na verdade, há somente 310 mil vagas no sistema prisional brasileiro. Os detidos vivem amontoados, em péssimas condições. Não há ambiente propício a correção e regeneração. Em 2013, foram cometidos 218 homicídios nas cadeias brasileiras. Não se passam dois dias sem um assassinato.

Entre 1994 e 2009, o número de presídios no país mais que triplicou, passando de 511 para 1.806, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional, mas não foi o suficiente para abrigar todos os condenados, já que, nos últimos 23 anos, a população carcerária do país cresceu 511%.

Dos presos brasileiros, somente 12% foram condenados por crimes letais. Dois terços da população carcerária caíram atrás das grades acusados de traficar drogas ou cometer crimes contra o patrimônio. Nos centros penitenciários, esses jovens transgressores convertem-se em alunos preferenciais e compulsórios das organizações criminosas. Serão muitos outros se aprovada for a redução da maioridade penal.

O Derby do Paulistão já terminou. O Time do Povo foi derrotado nos pênaltis. O atleta Elias saiu de campo aos prantos. Agora, esvazia-se rapidamente o estádio erguido em Itaquera. Anoitece de uma vez, precipita-se a garoa fina que define São Paulo.

Nos degraus da Norte, as faixas foram recolhidas. De repente, não há nada nem ninguém. Entretanto, ali no flanco direito, n’algum trecho da ladeira de concreto, os silenciados ainda reclamam desesperados, exigem justiças possíveis, lamentam o destino ceifado, choram a sentença dos jornais.


Nenhum comentário: